sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Quatro poemas, duas perseguições e uma aventura


quatro poemas


Os bolsos são muito úteis porque podem guardar escovas ou dinheiro. Mas a saia solar de Minna não tem bolsos. Enquanto a costurava, Anton sugeriu-lhe que não acrescentasse ao tecido qualquer espécie de poço em miniatura que lhe assediasse o movimento dos ossos.

Uma tarde de sábado as folhas onde Webern tinha escrito as seis peças para grande orquestra caíram para dentro de um barril de vodka. Quando Minna o avisou, ele correu para a janela e olhou para baixo. A distância era grande. "Então talvez também eu possa um dia cair assim, nadar com uma lanterna e uma garrafa de oxigénio em qualquer coisa de alcoólico".

Minna surpreende Anton a tentar levar a sua escova de cabelo à boca. Não é a primeira vez que acontece, nem será a última. Manda-o sentar-se e ralha-lhe. Webern procura desculpar-se. "Os dentes da tua escova para cima, muito perto uns dos outros... muito parecido com as árvores na Amazónia... as raízes para baixo... todos os dias no teu cabelo..." Passa lá fora um camião cheio de barris de vodka. Minna distrai-se, olha para baixo, Anton engole a escova.

Nenhuma novidade. O teatro está fechado. Hoje Webern assobia sob uma oliveira. Em cima 50% de céu, em baixo 50% de chão.

Duas perseguições

Anton Webern ainda não era nascido. Os seus avós chegaram a casa. A avó disse: "Tens de podar a oliveira. Qualquer dia os ramos crescem tanto que partem os vidros e entram pela casa dentro". "Para reaver as azeitonas", pensou o avô.

A mãe de Anton corre atrás dele: "Mato-te com a enxada!" grita ela, empunhando de facto uma enxada. Anton foge para uma horta seca. Riem os dois. São duas horas da tarde, Anton alcança o poço.

Aventuras

Às sete da manhã, enquanto o sol subia, a rapariga estava em cima do terraço. Dizia a medo: "bronzeia este corpo: o país das pernas, o país do peito". Este é o primeiro de quarenta dias.

e
duas sobrancelhas silvestres

Amanece, que no es poco

Pequeno medley de uma grande comédia de José Luis Cuerda

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Esta noite no Tejolense Atlético Clube

Não há Inverno. Há tango.

O fabuloso mundo das ETT



Já só faltam 16 dias para a Grande Gala dos
Prémios Precariedade 2008

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Timor-Leste, a ilha insustentável

Por Pedro Rosa Mendes, para o PÚBLICO

1. Timor não é um Estado falhado. É pior. Falhou o projecto nacional idealizado há uma década

Em nove anos de liberdade, Timor-Leste não conseguiu assegurar água, luz e esgotos para a sua pequena capital. Baucau, a segunda "cidade", é uma versão apenas ajardinada da favela que é Díli, graças à gestão autárquica (oficiosa) do bispado.
O resto, nos "distritos", é um país de cordilheiras que vive o neolítico como quotidiano, longe do mínimo humano aceitável. Chega-se lá pelas estradas e picadas deixadas pelos "indonésios". Há estradas principais onde não entrou uma picareta desde 1999.
O bem público e as necessidades do povo são ignorados há nove anos com um desprezo obsceno. O melhor exemplo é a companhia de electricidade: durante cinco anos, a central de Díli não teve manutenção de nenhum dos 14 geradores - todos oferecidos -, até que a última máquina de grande potência resfolegou.
O Hospital Nacional Guido Valadares, onde se inaugura esta semana instalações rutilantes, não teve até hoje um ecógrafo decente nem ventiladores nos Cuidados Intensivos. Não há um TAC no país (embora custe o mesmo que dois dos novos carros dos deputados); a menina timorense com que Portugal se comove teve o tumor diagnosticado pelo acaso de um navio-hospital americano que lançou âncora em Díli. A taxa de mortalidade infantil é apenas superada a nível mundial pelo Afeganistão. A mortalidade pós-parto é assustadora. Entretanto, cada mulher timorense em idade fértil tem em média 7,6 filhos.
Circulam entre diplomatas e humanitários os "transparentes" de um relatório do Banco Mundial que conclui que "a pobreza aumentou significativamente" entre 2001 e 2007 (um balanço arrasador do consulado Fretilin, porque o estudo usa indicadores até 2006). Cerca de metade dos timorenses vive com menos de 60 cêntimos de euro por dia e, desses, metade são crianças. Timor é um país rico atolado na indigência, onde os líderes se insultam por causa de orçamentos que ninguém tem sequer unhas para gastar.

2. A "identidade maubere" é uma ficção dispendiosa

A identidade "nacional" do espaço político timorense não existe, como explicam os bons historiadores, que sempre referem no plural os "povos" de Timor. Sob o mito do "povo maubere" existe um mosaico de dezena e meia de entidades etnolinguísticas que se definem por oposição (em conflito, separação, desconfiança, distância) ao "outro", mesmo em aliança. O "outro" de fora, ou o "outro" de dentro. É um tipo de coesão circunstancial e oportunista que morre com o conflito, engendrando a prazo outros conflitos, em ciclos de calma e crise numa ilha com paradigmas medievais.
A gesta "maubere" produziu, finalmente, uma inversão cronológica. A RDTL é uma cristalização política de uma sociedade que teve alforria de Estado antes de construir uma identidade que o sustentasse.
A filiação de cada timorense continua a ser à respectiva "uma lulik" (casa sagrada) e às linhagens que definem outros territórios e outras leis que não passam por ministros, juízes nem polícias, mas por monarcas, oligarcas e chefes de guerra. É isto que os líderes tentam ser - ou, de contrário, não são.

3. O Estado independente é sabotado pelas estruturas da resistência

O Estado timorense funciona. Não significa, porém, que produza algum resultado, exceptuando a Autoridade Bancária de Pagamentos, única instituição onde a aposta na localização de quadros e a recompensa do mérito fizeram do futuro banco central um oásis de probidade nórdica.
As estruturas operativas do país são paralelas, oficiosas e opacas. Vêm do tempo da resistência e não houve coragem ou inteligência para as formalizar no jovem Estado.
Um caso óbvio é o dos veteranos das Falintil que não integraram as novas Forças de Defesa (FDTL). Em 2006, foi a 200 desses "civis" que o brigadeiro-general Taur Matan Ruak recorreu num momento crítico de sobrevivência do Estado. O Estado-Maior timorense está, porém, a contas com a justiça. Se passar da fase de inquérito, talvez o processo das armas e da milícia "20-20" abra um debate que devia ter acontecido antes. O lugar das "reservas morais" tem de ser formalizado, sob pena de não haver linha de separação entre patriotismo e delinquência. O major Alfredo Reinado ilustrou, de forma trágica, a facilidade deste salto.
As estruturas paralelas, porém, não são exclusivo do sector de segurança. O ex-comandante Xanana Gusmão não esconde que a Caixa, a rede clandestina de "inteligência", continua activa. As fidelidades, mas também os reflexos e atavismos da resistência, continuam em vigor. A "velha" voz de comando é, por vezes, a última instância e, mesmo em Conselho de Ministros, o último argumento é por vezes o voto de qualidade por murro na mesa.
José Ramos-Horta, diasporizado das Falintil e do mato até 1999, não tem cão mas caça com gato. O chefe de Estado, em linha com os símbolos maçónicos debruados nas suas camisas, é desde há dois anos o segundo "pai" da Sagrada Família. É uma sociedade fundada em 1989 pelo comandante Cornélio Gama "L7", que evoluiu para uma combinação algo mística de grupo religioso, partido político e milícia justiceira. Foi "L7", com a bênção de Xanana Gusmão, que apresentou a candidatura de Ramos-Horta à Presidência em Fevereiro de 2007, em Laga. Vários elementos da Sagrada Família integram a guarda do chefe de Estado.
A República timorense é limitada e sabotada pela recorrência do ocultismo, apadrinhamento, vassalagem e mentalidade de célula. No entanto, se não fossem as redes informais de confiança e de comando, por onde passam também os códigos de fidelidade e os valores de grupo, a RDTL já teria implodido.
Versão moderna dos Estados dentro do Estado: a última contagem, confidencial, dá conta de 350 assessores internacionais junto do IV Governo Constitucional.

4. A estratégia dominante na sociedade está tipificada no Código Penal. Chama-se extorsão

A simpatia pela "causa" timorense estagnou num ideal de sociedade e de pessoa que é desmentido pela frustrante experiência quotidiana. Ignorância, trauma, miséria e negligência, polvilhados com os venenos da complacência, paternalismo e piedade, banalizaram comportamentos de rapina, desonestidade, egoísmo e má-fé. A solidariedade, a generosidade e a gratidão estão em minoria. O que é marginal ou criminal noutros sítios faz, no Timor de hoje, catecismo nas repartições, nos negócios, no mercado, no trânsito, no lar.
A "liderança histórica" reina sobre um país intratável, em passiva desobediência civil, que pensa e age como se todo o mundo lhe devesse tudo e como se tudo estivesse disponível para ser colhido, do petróleo ao investimento e à atenção internacional. A cobiça e a inveja social infectam a esfera política, social, laboral e até familiar. "Aqui todos mandam e ninguém obedece", para citar um velho timorense educado em princípios que deixaram de ter valor corrente no seu país.
A "estabilidade" actual é comprada com um Natal todos os dias. Tudo é subsidiado, desde o arroz ao combustível, com uma chuva de benesses e compensações a um leque impensável de clientelas e capelas. A sociedade civil, digamos, é uma soma de grupos de pressão que recebem na mesma moeda em que ameaçam com incêndios e pedradas, desde os deslocados aos peticionários ou aos estudantes.
Todo esse dinheiro nada produz. Algum sai para a Indonésia, que os novos-ricos timorenses consideram um sítio mais seguro para investir. O que fica compra motorizadas e telemóveis. A Timor Telecom vai fechar o ano com 120 mil clientes na rede móvel, 12 por cento da população, uma taxa ao nível de países com o triplo de rendimento per capita do timorense.
A maioria dos timorenses não paga o que consome: água, electricidade (por isso o consumo aumenta 25 por cento ao ano, um ritmo impossível de acompanhar por qualquer investimento nas infraestruturas), casa, terra, crédito, arroz. Este modelo de pilhagem e esbanjamento é insustentável na economia, na banca, na ecologia, na demografia e, a prazo, até na política.

5. A ocupação indonésia foi implacável e a liderança timorense desmantela com zelo o que restava: a dignidade

O gangster mais conhecido do submundo de Jacarta nos anos 1990 - o timorense Hércules - é, hoje, o dono de obra no melhor jardim da capital. Os condenados por crimes contra a humanidade, como Joni Marques, da "Tim Alfa" (pôs Portugal de lenço branco em Setembro de 1999 com um massacre de freiras e padres), voltam às suas aldeias com indemnizações por casas que foram queimadas, enquanto eles estavam na prisão.
Na Comissão mista de Verdade e Amizade (CVA), foi a parte timorense, perante a surpresa indonésia, que tentou conseguir uma amnistia geral para os crimes de 1999, com uma persistência de virar o estômago.
O relatório da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação (CAVR), uma monumentae historica de 24 anos de dor em sete volumes, espera há três anos a honra de um debate no Parlamento. Duas datas estiveram marcadas em Novembro, mas, nos bastidores, os titulares políticos tentam obter uma prévia sanitização das recomendações da CAVR.
Mari Alkatiri, Xanana Gusmão e José Ramos-Horta, ao sectarizar a memória da violência, desbarataram o capital obtido à custa de duzentos mil mortos (incluindo os seus entes queridos). A herança do genocídio é aviltada na praça como capital de risco e como cartão de visita. O resultado é uma distopia moral, um abismo de proporções tremendas em que se afunda um país cuja soberania teve, afinal, uma legitimidade essencialmente moral no seu contexto geográfico e histórico.
Os mortos são a parte nobre de Timor, merecedores de tributos em rituais, lutos e deslutos. Mas nesta terra de cruzes, valas comuns e desaparecidos, não houve ainda a caridade de 200 mil euros para instalar um laboratório de ADN que permitisse, enfim, devolver os ossos ao apaziguamento dos vivos.
A injustiça e a impunidade são valores seguros em Timor-Leste.

6. Timor fala todas as línguas e nenhuma

Timor é uma ficção lusófona onde a língua portuguesa navega contra uma geração culturalmente integrada na Indonésia, contra a geografia, contra manipulações políticas internas e contra a sabotagem de várias agências internacionais. A reintrodução do português só poderá ter êxito com a cumulação de duas coisas: firmeza política, em Díli, sobre as suas línguas oficiais; massificação de meios ao serviço de ambas.
O Instituto Nacional de Linguística tem 500 dólares de orçamento mensal (exacto, seis mil USD por ano).
Na "Babel lorosa'e", como lhe chamou Luiz Filipe Thomaz, não se fala bem nenhuma das línguas da praça (tétum, português, inglês, indonésio). Uma língua é a articulação de um mundo e do nosso lugar nele. Perdidos da gramática e do vocabulário, uma geração de timorenses chegou à idade adulta e ao mercado de trabalho sem muitas vezes conhecer conceitos como a lei da gravidade, o fuso horário ou as formas geométricas, apenas para dar exemplos fáceis.
Aos poucos bancos com balcão em Díli (três) chegam projectos de investimento estrangeiro cujos planos de amortização não prevêem mão-de-obra timorense ou que contam os timorenses como peso-morto na massa salarial, ao lado de operários ou técnicos importados que responderão pela produção.

7. "Entrar nas Nações Unidas é ficar politicamente inimputável"

Diz um diplomata que gosta do teatro de sombras javanês: "A ONU em Díli está em sintonia com os dirigentes timorenses. Todos fabricam fantasmas: o grande estratego, o grande diplomata, o grande guerrilheiro. Se não fosse assim, as máscaras cairiam e seria um grande embaraço..."
A UNMIT, uma das missões mais caras da ONU, afunda-se penosamente no mesmo vazio moral da liderança timorense. Três mil funcionários, polícias e militares, uma massa crítica formidável que poderia ser um contrapeso à incompetência e à insensatez, são esmagados pelo cabotinismo carreirista do chefe de missão, Atul Khare, e de acólitos que acham bem em Timor aquilo que jamais admitiriam nos seus países desenvolvidos. "Entrar nas Nações Unidas é ficar politicamente inimputável", explicou um alto-
-funcionário da UNMIT.

8. Não há nenhuma bandeira de Portugal no mar de Timor

Não há interesses portugueses em Timor-Leste, porque não há condições objectivas mínimas para fazer vingar qualquer interesse mensurável. Não, decerto, pelos critérios que vigoram em qualquer outro lado. Seria bom que isto fosse entendido pelos nossos responsáveis políticos. Portugal concedeu mais de 440 milhões de euros de 1999 a 2007 em ajuda ao desenvolvimento a Timor-Leste, que consome quase metade do bolo total da nossa cooperação.
Continuando uma tradição portuguesa, as projecções pós-
-imperiais e os fascínios com sucessivos aprendizes de Mandela ganham precedência sobre as informações que chegam dos operadores económicos no terreno. "Mas você nunca ouvirá um governante português dizer nada contra Timor", dizia, este ano, à mesa do café, um governante português de visita.

9. "Tudo ainda não aconteceu"

A ferida feia no corpo de Ramos-Horta, quando o Presidente jazia numa poça de sangue depois de levar dois tiros de cano-longo, é um buraco tão fundo como a vergonha da nação. A ressurreição do profeta-Nobel criou um cristo gnóstico mas as chagas, nesta terra dilacerada, já não fundam religiões com a facilidade com que há dez anos fundavam Estados.
Díli, como um circo máximo de gladiadores, fervilha de jovens empurrados para a luta. Não têm emprego, educação ou perspectiva. Alguém lhes diz: "Não sois bandidos. Sois guerreiros." Mas dos aswain, os heróis das montanhas timorenses, resta-lhes a coragem física, um retalho de rituais dispersos por grupos rivais e a intransigente sacralização do seu território. Uma mistura inflamável para toda a nação. "A resistência continua mas agora sem rumo. E, sem rumo, só faz merda", diz o ex-assessor de Ramos-Horta para a Juventude José Sousa-Santos.
"Tudo ainda não aconteceu", avisava um "espírito" antepassado, pela voz de uma menina de Ermera, no Natal ainda inocente de 2005.

Díli, Novembro de 2008

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Poema para Galileo

Para assinalar o Dia Nacional da Cultura Científica - que comemora o nascimento do cientista-poeta Rómulo de Carvalho-António Gedeão, o Público gravou o Poema para Galileo a 35 vozes. Bonito. Calha bem ter aberto hoje a Poesia Incompleta, onde não falta Gedeão, procurem nos Antónios. Copio o poema mas para Lévi-Strauss, outro cabeção, que hoje faz 100 anos.

Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios).

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria...
Eu sei... Eu sei...
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá na Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um guiso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.

Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando um perigo
para a Humanidade
e para a civilização.

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las -, nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.

E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma

Ai Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andava a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso, estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A melhor livraria do mundo ou quase

abre na próxima segunda-feira

Dito de outro modo, viver é poesia

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

E ainda

A gente vota porque a gente adora

Votamos nas melhores propostas do Orçamento Participativo Online, que termina hoje.
Porque somos pessoas que fazemos as coisas em cima da hora, mas adoramos Lisboa.

A gente vai porque a gente aprecia


Mais conexões aqui

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Lição de música, por Paul Tortelier

Lição de música, por Jairo Aníbal Niño

.....- Dó
..................
........................
Mi
................................
...
........................................
Sol...
..................................................
...
........................................................ ...
Si

............................................................ ... .- Si?

................................................................- Si, Mi Sol, Si!

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Meglio Stasera

Do coito ao colo e pelos sete mares até hoje

É Lídia Jorge, de língua afiada:

1. Claro que o Português é uma língua maravilhosa. A prova é que se um ladrão me roubar eu encontro as palavras necessárias para lhe gritar atrás. Posso é não apanhar o ladrão nem recuperar a mala. Mas mesmo aí, fico com todas as palavras para me queixar, toda a sintaxe para expor, toda a morfologia para descrever a pessoa em causa e o facto ocorrido. E se ninguém me ligar, encontro todas as palavras para me revoltar e para dizer as frases que substituem a batida com a porta. Também para a ira, o ódio ou apenas o humor, nas ruas, contra os automobilistas inatacáveis, consigo encontrar todas as palavras. A revolta, a diatribe, o grito de rebeldia, a ameaça da vingança, estão ao nosso alcance. E para os outros, os sentimentos bons, os decentes, como são o amor, a amizade, a saudade, a coita, a melancolia, ou mesmo o frenesi, a ansiedade, o despeito, a acédia, o desespero e o ciúme, também encontro todas as palavras que eu quiser.

Mas não só de homem para homem a língua fala. Também encontro todas as palavras para falar com as árvores e as bestas. Encontro todas para mandar aparelhar o coche, fazer o baile e o fado. Um sermão. Tenho todas as palavras para ir à igreja ouvir o sermão e a ladainha. E tenho todas para ir à igreja ouvir o sermão e a ladainha. E tenho todas para comer à beira da estrada, junto às cestas. Tenho todas as palavras para a lavoira, todas para os ventos. A quantidade de palavras sobre os barcos, a maresia, o marejar, o almareado, a tramontana, tudo o mais que vem do mar, como se ele fosse nosso, ou o tivéssemos feito com a nossa própria língua. Palavras para atravessar todos os oceanos, para percorrer todas as praias. Para o sentimento e o passado presente donde ele brota, tenho todas as palavras necessárias. Até disponho dessa palavra intraduzível na sua unidade e síntese de corpo e afeição que é o colo. O colo intraduzível. Pôr ao colo, andar ao colo, levar ao colo, menino de colo. Não me admira que Joyce e Kafka, lá onde o sentimento melhor toca a abstracção, consigam ser traduzidos na nossa língua como para nenhuma outra. Isto é, posso andar dum lado para o outro sobre a terra, a relva, as colheitas, a floresta, a onda, o corpo humano e a sua alma com todas as palavras para dizer. As palavras do ser, do desejar e do apetecer, as questões sem tempo e fora do tempo, as questões do por dentro, estão nesta língua de forma rica e variada, ao alcance da mão e da língua. Aí, não há nada que dizer. Porém, todos sabemos - Onde ela falha e falta, onde ela não chega, é no campo das coisas contemporâneas do progresso, do bem-estar, das rodas e das máquinas, das recentes engrenagens invisíveis, que podem mais que todas as rodas e todas as máquinas, aquele campo a que, à falta de melhor, poderemos dizer, em vez da pele da Cultura, a Civilização.

2. Aí, sim. No campo da Civilização, como outras línguas, a nossa língua falha. É como se tivéssemos todas as palavras, de forma intemporal, para viver até ao Século Vinte, mas forçados dentro dele. A suspeita que se tem é de que a língua parou com o motor, o vapor e a gasolina, a ideia de que a língua não fez a revolução industrial, não a criou, não saiu dos que a criaram, ou só muito tarde foi inventada. Bastava entrar no automóvel primitivo para a língua não chegar. Não se sabia dizer châssis, nem tablier, nem manette. Não se soube dizer, durante muitos anos. Também bastava entrar num quarto de mulher para não se saber dizer toilette. A tinta para os lábios foi bâton, para as faces foi rouge, o cabelo foi à garçonne e o ondulado chamou-se mis-en-plis. Como hoje shampoing, brushing, rinsage, e lifting, apesar de massagem, manicura, ou permanente. De qualquer modo. Ninguém, há muitos anos, inventou o quer que fosse, em Portugal, no domínio da toilette, para lhe ter dado um nome que viajasse. O mesmo na cozinha. Mousse, soufllé, passe-vite ou kitchnette. Até para kitchenette, essa pequena cozinha que iria tão bem connosco, não temos nome para chamar. Para não falar no menu, no catering que nós afinal usamos, mas não criámos. Aliás, a criança tem sua tetina posta no biberon e não há palavra portuguesa para envolver essa garrafa com leite, tão primordial. Não há, porque um biberon não é um bebedoiro nem uma mamadeira. E naturalmente que eu queria que o bébé bebesse em português.

3. E no divertimento, a boîte e o dancing, o discjockey e o rave. E no desporto, tennis, football, goal, outside, off-sider, tudo o mais que é um sem fim, e finalmente Mister. Ah! Como é interessante um português, pequeno e escuro, sarraceno, treinador de futebol, ser chamado de Mister! O Mister isto, o Mister aquilo... Além do escritório onde reina todo poderoso o dossier. Também pelo dossier uma pessoa não pode chamar em Língua Portuguesa. Nem à fadiga muito especial, criada no seio da sociedade do dossier, se pode chamar cansaço ou esgotamento, mas stress. Stress corresponde a um outro tipo de canseira. E quem diz stress diz manager, e management, e marketing, e ship, e fax e também shoping e trade shoping, que não são feiras, nem centros comerciais, nem tão pouco mercados, mas são isso mesmo, shopings e trade shopings, outras noções, outra existência, outros talhes de cintura, outros cabelos, outra pose na vida, boa ou má, não interessa, outra realidade, outra pretensão, outro sonho. E na verdade, eu não me oponho ao sonho nem à realidade. É por isso que me sento junto aos shopings, onde nem sempre me apetece entrar, mas não penso jamais na palavra corrupção.

4. Porque as línguas são sistemas abertos, e as palavras e as frases, e os sons que vêm dentro delas viajam quando têm combustível para viajar, e implantam-se lá onde encontram um lugar carente duma nova realidade. Vêm com os objectos e as invenções, e ficam se os aceitam.
A luta pode chamar-se colonização, e nem sequer é subtil. Gira como o mundo, para além das línguas, presidindo às mortes e às vidas. Em nada como no devir das línguas o anonimato é tão intenso, apesar de ter sujeito. Ninguém é responsável por que na faixa direita das ruas alguém tenha mandado escrever BUS por economia de espaço. Ou TAP-AIR-PORTUGAL, para que até os cegos vejam que a Transportadora é aérea e é de Portugal. Talvez de outro modo, mais sagaz e mais nacionalista se entendesse pior. Talvez até já nem houvesse transportadora aérea portuguesa. O que sei eu? A vida anda e move-se por vontades indomáveis de que nós mesmos somos autores secundários e derradeiros. E jungle, e handicap, e overdose, e stand by, e black out... Ainda há uns anos eu ironizava os parties num livro que escrevi onde se falava de perdas da memória colectiva com uma espécie de ironia. Mas recentemente Agustina Bessa-Luís escreveu um diálogo, sobre o qual Manoel de Oliveira fez um filme, um e outro chamados "Party", ambos de cinco estrelas, e ninguém falou, nem poderia falar, sobre qualquer perda de identidade. Não há tal para perder. Porque o Party, o velho Garden Party à inglesa, entretanto, entrou na nossa vida, e ninguém deu por isso, nem é para lamentar. O Garden Party afinal fazia falta na nossa vida nova, entretanto nova burguesa disfarçado de outra cara, e nós não sabíamos. Como antes os proletários não conheciam a grève, nem o meeting, nem os políticos recentes o gentleman's agreement e a task-force. Então, meu Deus, façamos as pazes com o inelutável, na certeza de que nenhum decreto pode vedar a entrada do sonho e da viagem. E o sonho, ou a facilidade, para quem os usa, está aí.

5. Por mim, aqui vou vivendo bem com a nossa língua de raiz rural e marítima. Passo pelas ruas e as palavras nascem das coisas com cheiro a maresia, a salmoura e a laranjas. Ainda não inverti a realidade, ainda acho que o champô cheira a amoras, ainda não digo como os meus filhos que o laranjal cheira a champô. Mas não me incomoda o trato com o que chega, embora não me fique indiferente ao que não exporto. De qualquer modo, também coche, o que eu sabia aparelhar, era francês, depois de ter sido checo e húngaro. E charrette, e cachecol e cache-nez. O chá era dos chineses, dialecto mandarino, e o café era árabe, turco, e depois foi italiano. E o lunch que veio de Inglaterra e ficou lanche, servido sob o bule que foi malaio. Palavras que hoje são de todos, porque os objectos são de todos os que os usam, e os seus nomes importados, só por si, não atingem o coração das línguas. O coração de cada língua é que é inatacável. O nó górdio da sintaxe, o nó dos verbos que multiplicam a acção pelos pronomes, os pronomes que definem os sujeitos e os destinatários, activos, passivos, e reactivos. As preposições, as formas de as pôr ou não pôr antes e depois, o modo de juntar as palavras de forma a criar outras, o modo de as sobrepor e despedaçar, esse sistema estruturante das línguas, que faz o idioma e o espírito, mostrável pela Gramática, não regido, isso é que constitui o órgão propulsor da Língua. O coração da língua, o sistema duro, a sua parte mais estável, aquela sobre a qual se pode descansar.

6. Porque a língua, ela, toda inteira, nunca parou nem pára, é um sistema em permanente corrupção. A língua não precisa de sal. Apodrece com perfume. O aroma da Língua solta-se ao ser arejada, batida, entrada, removida, um sistema aberto, uma realidade mutável consoante as várias outras realidades que a empurram e a definem, e já o disse, os usos são indomáveis. Fiz parte daqueles que queriam implantar em vez de implementar, dos que quiseram espectáculo em vez de show. Em vão. A língua engrossa contra a vontade de cada um. E nós, aqueles que designam por escritores, banais como os banais falantes, vamos pelas partes moles da língua, andamos pelas suas margens corrriqueiras e flácidas, metemo-nos pelos restos, pelas bordas, aproveitamos o que sobeja, o que de repente foge para diante, avessos aos sistemas de conservação, seguros de que o coração da língua enfraquece e esquece, se as franjas da semântica não se renovam. E toda a vivificação é uma novidade, e toda a novidade, no início, uma corrupção. Também já o disse. O que ainda não disse é que, por vezes, assalta-me a absurda ambição de poder falar todas as línguas. Poder entrar na alma delas para perceber onde está a totalidade que as precede, ou se não as precede, pelo menos, a todas elas preside. A ambição de ficar na posse da natureza da fala. Na fantasia de poder tocar todas as línguas sobre o vasto piano delas. Mas depois de obter essa impossível ciência, tudo o que soubesse e aprendesse, seria para falar e escrever em língua portuguesa.

27/06/1997
(achado no Ciberdúvidas)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O génio do cavaquinho, do bandolim e da braguesa desbragada

O Júlio Pereira anda em turné a espalhar a música de Geografias, muito bem acompanhado pela Sofia Vitória e pelo Miguel Veras. Aqui podem vê-los na Casa da Música, no Porto. Eu vi-o abrir a temporada do Teatro Viriato, em Viseu. O espectáculo é delicioso e além dos temas do último disco inclui três músicas de Zeca Afonso e versões inflamáveis de I Can't Get No (Satisfaction) ou de La Molinera, entre outras surpresas. Este mês anda por Espanha: amanhã Madrid, no dia 15 Burgos e no dia 28 Múrcia. Lisboa teve-o na Festa do Avante mas não está satisfeita. Tem frio, quer dançar.

Talento aqui chove


Há uns dias tive o prazer de entrevistar a Pongo Love para uma revista alemã de intercâmbio cultural, a Kulturaustausch. O artigo há-de sair em meados de Janeiro, em alemão. Ela vai estar ao vivo e a kuiar com os Buraka Som Sistema no próximo Sábado, na Voz do Operário, em Lisboa. Dezassete aninhos apenas.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Em "termos exibicionais"

Quique nem sempre é Flores.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Para Fez ou para a prisão n.º 400

Era uma vez um homem que caminhava no deserto. Do nada, apareceu-lhe uma criatura de barbas e voz sobrenatural.
- Bom dia,
disse Deus.
- Bom dia,
respondeu o homem.
- Para onde vais, meu bom homem?
- Vou para Fez.
- Vais para Fez, se Deus quiser.
- Vou para Fez, quer Deus queira quer não queira,
respondeu o homem, ao que Deus reagiu com gesto irado, transformando o homem em sapo. Depois criou um charco para o sapo e desapareceu.
Passaram anos até que Deus, num raro momento de descontracção, se lembrasse do homem e do charco.
- Deve estar mais humilde,
pensou, e decidiu visitá-lo.
- Bom dia,
exclamou o celeste, depois de transformar o sapo em homem.
- Bom dia,
respondeu o homem, enquanto caminhava.
- Para onde vais?
- Vou para Fez,
começou o viajante, mas nem bem terminava a frase e já chapinhava no charco. E somaram-se décadas até que a compaixão apagasse no divino coração a ofensa.
- Teve tempo de aprender a lição,
reflectiu o omnisciente, antes de voltar a descer à terra e devolver a fala ao cativo.
- Bom dia, meu bom homem. Ora diz-me cá, para onde é que tu vais?
- Vou para Fez ou para o charco.

Estava a ler a notícia da terceira prisão de Omer Granot, israelita, pacifista, linda, quando me lembrei desta história. Objectora de consciência num país em que o serviço militar é obrigatório, Omer iniciou hoje a terceira detenção na prisão n.º 400, numa base militar próxima de Telavive. "Recuso-me a servir num exército que comete todos os dias crimes de guerra nos territórios palestinianos ocupados", diz ela. Tem a particularidade de ser filha do ex-número 2 da Mossad (os serviços secretos israelitas).

Obama está na área!

Wegue, wegue wegue wegue. Wegue, wegue wegue wegue. Wegue, wegue wegue wegue.
WEGUE

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Eles vêm aí

Alfredo é reformado devido a complicações na próstata.
Júlio é controlador de tráfego aéreo e especialista de kizomba.
Cristóvão tem 2 filhos, 3 cães e 4 empréstimos bancários.
Malaquias vende castanha assada no Inverno e gelados no Verão.
Ou talvez não.

Caracol mau e companhia, um projecto de cartaz por Pakito Delaunay

domingo, 2 de novembro de 2008

El maestro Cáceres

Milonga Melingo

sábado, 1 de novembro de 2008

O Balneário (1/4)

"O que dizem de uma cidade os seus balneários públicos?
Que histórias se cruzam sob os duches gratuitos da capital?"



O Balneário é uma Grande Reportagem de Miriam Alves e Filipe Ferreira (imagem). Um trabalho distinguido com o 1º Prémio no Festival Internacional de Televisão de Montecarlo, o 1º Prémio AMI – Jornalismo contra a indiferença e uma menção honrosa no prémio de jornalismo da Associação Nacional de Municípios Portugueses.